May 23, 2007

Uma crônica.



Olás,


Grace passô, esta da foto, é colunista do jornal O Tempo. Aprecio muito sua escrita, que é viva e instigante. Este texto que trago agora é um pouco longo. Talvez vc não tenha tanto tempo, mas aconselho, se conselho vale algo, que leia. Abraço!!

- Líquido Fácil

Corte o seu dedo. Não me amoleça, não te amoleça, peço que lance mão de algum objeto pontiagudo, melhor que não seja uma faca porque certos objetos carregam em sua história muita pretensão sinistra.
Um objeto pontiagudo pode ser uma agulha simples, de costurar camisas, coletes que seja. E, assim, com o objeto, perfure um de seus dedos. Façamos um pacto de sangue. Nada é fácil, as coisas exigem certos sacrifícios.
Quanto ao tamanho do buraco, que ele não seja problemático para carne, mas que seja um buraco. Já o furou? Sim, perguntei a você: já o furou? Se o objeto cortante não está por perto e precisa de um tempo para ir pegá-lo, dou o tempo.
Enquanto isso faço hora por aqui, distraio os outros que já estão prontos, vou falando sobre outros assuntos, escrevi outro dia alguns versos. Olhe para eles: Era uma vez Madalena. Um dia ela tropeçou e se viu Suzana.
Tempos depois encontrou-se com Carolina e transformou-se em Valéria. Anos mais tarde, olhando no espelho, percebeu alguém acenando para ela, dizendo que a procurava há tempos. Era Madalena.
Elas se deram as mãos e ela faleceu. Então, agora, com o objeto na mão, perfure seu dedo. Vê como é de cor forte seu sangue? O meu também está assim, vermelho. Não, você não vê! Eu sei que não vê, você não me engana.
Pedi para que tirasse seu sangue, percebe o valor disso? Isso é muita coisa. No entanto, eu sei que não o fez, não sou idiota, não se preocupe. Enquanto distraía os outros também não foi pegar objeto cortante algum, eu sei. Vê?
A impotência dessas palavras? São palavras, só isso. Posso aqui, na labuta de meu trabalho, pedir simplesmente para que se levante. Só isso, que se levante. Com certeza você não vai se levantar.
E digo uma coisa simples como essa: que apóie seus pés no chão e eleve teu corpo, apenas. Você não o fará. Sabe por quê? Porque pensará que são apenas palavras, grandes que sejam, sempre as olhará com uma espécie de superioridade.
E não se trata de desvalor a essa expressão, trata-se de refletir o espaço que me é dado no mundo. Quando pequena devo ter pensando isso, o quanto às vezes as palavras são muito pouca coisa, quando pequena pensava essas coisas.
Pronto, estou com raiva delas, você de certo continua imóvel; se estava em pé continua em pé, se estava sentado, permanece assim.
Mania dessas construções vãs serem tão aficionadas pela ficção, quer saber, representam muito mal o que eu sou. Você, também, não poderia se mover um pouquinho? Desculpe a imensa intromissão, mas poderia ajudar, humano!
Pelo menos engolir uma saliva, ninguém nem ao menos verá, ao menos isso, escorregar a saliva na boca, estou depressiva, de repente me veio a insignificância desse trabalho, de repente a memória me reavivou tantos quilômetros de vida percorridos até aqui para chegar nisso, em uma pessoa que não consegue erguer alguém, ou sequer escorregar a saliva na língua de outrem, eu estou pequena para mim mesma, vou me suicidar.
Estou indo agora até a cozinha pegar aquele conhecido objeto. Espere um momento. Enquanto me desloco, vou colocar algo de ler aqui até que eu chegue neste local, minha casa é extensa, remexendo minha gaveta, achei perdida essa história: Olá, eu sou o Orgasmo. Tu me conheces, serei rápido.
Não é egocentrismo, mas se não me conheces, tenho pena de ti. Eis a faca. Estou triste, sou só, não estou bem. Senhor, para onde vou, quem sou eu?
Desde cedo, ainda na escola, minha família foi alertada de minha tendência à depressão, alertada de minha extrema sensibilidade, sou sensível, me sinto impotente. Você creia ou não nas minhas palavras.
Só alerto que são as últimas, cortarei os pulsos, ao menos as últimas palavras devem ter algum peso, erga-se! E quero que as derradeiras jorrem como o sangue que escorrerá de mim, quero que desabem assim como quando se fura a pele e se percebe que a membrana era no fundo represa delicada do líquido fácil.
Porque essa matéria é líquido fácil. A lágrima é quase involuntária, não se extrai com tanta facilidade, há que se esperar o corpo querer expulsar o sal de si.
O suor exige outras temperaturas, o leite da mãe é alimento e se jorrasse como o sangue morreríamos de amor. O sêmen não é fácil, graças a Deus.
Resta ele, na nata que é o corpo, densidade suprema que esconde o líquido que nos mantém erguidos, que qualquer mão colhe, qualquer gesto inocente, mordida faminta, é quase vulgar o sangue, qualquer pequeno chifre, prego ou insignificante mosca numa tarde passageira de inverno ou verão.

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